A Idade Média e o início da Idade Moderna foram marcados por um paradoxo cruel: em um tempo em que o conhecimento era limitado e a medicina rudimentar, aqueles que buscavam aliviar o sofrimento humano frequentemente se tornavam alvos de perseguição [1]. O talento não era o único elemento exigido para o exercício da caridade, era necessário também ter coragem. Muitas mulheres, especialmente curandeiras e parteiras, foram acusadas de bruxaria e condenadas à fogueira por praticarem aquilo que, hoje entendemos como ciência. [2]

Entre os séculos XV e XVII, a Inquisição e outras instituições perseguiam qualquer um que fosse considerado uma ameaça à ordem religiosa. O Malleus Maleficarum, um dos mais infames manuais de caça às bruxas, publicado em 1487, descrevia como identificar, interrogar e condenar supostas feiticeiras. Muitas acusações eram baseadas no medo e na superstição, mas também havia interesses políticos e econômicos envolvidos: médicos licenciados viam as curandeiras como concorrentes indesejadas [3] [4]. Imagine um mundo onde não havia justiça, escolas ou um sistema de saúde.

Fonte: Animação gerada por Sora AI, baseada em um prompt criado para ilustrar o contexto histórico da perseguição às parteiras na Idade Média.
Um dos aspectos mais brutais desse período foi a perseguição às parteiras. O parto, até então um evento conduzido exclusivamente por mulheres, começou a ser dominado por médicos do sexo masculino, e muitas parteiras foram acusadas de usar "magia" para influenciar nascimentos. Algumas foram queimadas vivas sob a acusação de "roubar almas de recém-nascidos" ou "invocar espíritos demoníacos" para aliviar a dor do parto, entendida como sendo um castigo divino, mencionado no Livro de Gêneses como resultado da desobediência da mulher, portanto, impossível de ser aliviada por mãos humanas.
Da Perseguição ao Reconhecimento
Durante séculos, grande parte do conhecimento médico estava nas mãos de monges, médicos treinados pela Igreja e, ironicamente, de mulheres que transmitiam saberes de geração em geração. Ervas medicinais, sangrias, poções e práticas terapêuticas faziam parte do repertório de muitas dessas mulheres, que atendiam doentes e ajudavam em partos. [2]
Com o avanço do Iluminismo e o surgimento da ciência moderna, a caça às bruxas perdeu força, mas o estrago já estava feito. Milhares de mulheres foram mortas, e uma quantidade inestimável de conhecimento sobre ervas, tratamentos naturais e práticas de cura se perdeu para sempre. [5]

Fonte: Vídeo gerado por Sora AI, ilustrando a evolução das mulheres na ciência.
A ironia é que muitas dessas "bruxas" eram, na verdade, cientistas autodidatas, médicas e farmacêuticas antes do tempo. Hoje, a medicina reconhece a eficácia de muitos dos métodos que elas utilizavam. Ervas como a camomila, a valeriana e a artemísia, antes consideradas parte da "bruxaria", as tais "poções mágicas", são agora estudadas e amplamente utilizadas em tratamentos naturais e farmacológicos. [6]
A perseguição a mulheres acusadas de bruxaria, especialmente curandeiras e parteiras, ocorreu principalmente na Baixa Idade Média (séculos XIV e XV) e se intensificou durante o Renascimento e o início da Idade Moderna (séculos XVI e XVII). O auge da caça às bruxas aconteceu entre 1450 e 1750, período em que estima-se que dezenas de milhares de mulheres foram executadas na Europa. [7] [8]
Os principais focos dessa perseguição foram:
- Sacro Império Romano-Germânico (atual Alemanha, Áustria, Suíça e partes da França e Itália) → Foi uma das regiões com mais execuções de supostas bruxas, especialmente durante a Reforma Protestante e a Contrarreforma.
- França → Os julgamentos de bruxaria ganharam força no final do século XV, com a Igreja e tribunais civis promovendo execuções.
- Inglaterra e Escócia → Na Escócia, entre 1590 e 1660, houve uma grande onda de julgamentos e execuções de mulheres acusadas de bruxaria. Na Inglaterra, a perseguição foi mais moderada, mas ainda assim presente.
- Países Baixos → Conhecidos por algumas das primeiras publicações científicas sobre ervas medicinais, mas também palco de julgamentos e condenações de curandeiras.
- Espanha e Portugal → A Inquisição espanhola e portuguesa eram mais voltadas para a perseguição de judeus e muçulmanos convertidos (os chamados "cristãos-novos"), mas ainda assim houve casos de mulheres condenadas por bruxaria, principalmente em comunidades rurais.
- Escandinávia (Suécia, Noruega e Dinamarca) → Tiveram execuções tardias, sendo a Suécia um dos últimos países a realizar julgamentos de bruxas no final do século XVII.
Com o passar dos séculos, o mundo se afastou das fogueiras, mas a marca dessa perseguição permaneceu. A exclusão das mulheres da ciência médica perdurou por muito tempo, e apenas nos últimos séculos elas começaram a recuperar o espaço que lhes foi brutalmente arrancado. Hoje, a Medicina e a Ciência, que um dia as condenaram, se veem obrigadas a reconhecer que muitas dessas mulheres foram vítimas não do sobrenatural, mas da intolerância e do medo. Devemos entender que a Inquisição não queimou bruxas e sim, mulheres, mulheres talentosas. [9][10]
O que a História nos ensina é que o conhecimento sempre foi uma arma poderosa — poderoso o suficiente para curar, mas também para ameaçar aqueles que desejam controlá-lo.
Referências
- 1. As bruxas do passado e do presente - Ciência Hoje. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/as-bruxas-do-passado-e-do-presente/. Acesso em: [01/01/2025].
- 2. EHRENREICH, Barbara; ENGLISH, Deirdre. Bruxas, parteiras e enfermeiras: Uma história de mulheres curandeiras. 1 ed. Uruçuça: Bruxaria Distro.
- 3. WALKER, Timothy D. Médicos, Medicina Popular e Inquisição: a repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2013.
- 4. SILVA, Maria. O Malleus Maleficarum e a questão da bruxaria: a mulher nos tempos da Inquisição. Trilhas da História, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Disponível em: https://trilhasdahistoria.ufms.br/index.php/RevTH/article/view/13081. Acesso em: [01/01/2025].
- 5. MAINKA, Peter Johann. "A bruxaria nos tempos modernos – sintoma de crise na transição para a modernidade." História: Questões & Debates, Curitiba, n. 37, p. 111-142, 2002. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historia/article/download/2705/2242. Acesso em: [01/01/2025].
- 6. SANTOS, G. F. "Alho, orégano e romã: ervas utilizadas por bruxas e suas atividades antimicrobianas." Ciência na Sociedade, v. 1, n. 2, p. 11-20, 2023. Disponível em: https://ciencianasociedade.institutionkolatesla.com.br/index.php/1/article/download/16/12/73. Acesso em: [01/01/2025].
- 7. GOODARE, Julian. The European Witch-Hunt. Routledge, 2016.
- 8. LEVACK, Brian P. The Witch-Hunt in Early Modern Europe. 3ª ed., Pearson Longman, 2006.
- 9. SCHEIBINGER, Londa. O feminismo mudou a ciência? Editora UNESP, 2001.
- 10. ROSSER, Sue V. Women, Science, and Myth: Gender Beliefs from Antiquity to the Present. ABC-CLIO, 2008.